Mr. Mouse escreve. Não se trata de
alta literatura, descansem. São antes aguarelas, pequenas pinceladas, uns esboços.
Ele teria aliás preferido pintar. Cada vez que a Emily tirava as sua paletas de
aguarela para fora, os seus grandes blocos de papel de desenho Moulin d’Arches
, Mr. Mouse ficava com vontade de fazer qualquer coisa com aquilo: a
desarrumação em si já parecia um
sucesso! Os álbuns para ratinhos da Emily são tão belos! Mas não, a sério, é
demasiado desajeitado para qualquer expressão gráfica. A culpa não é sua:
ensinaram-lhe a escrever com a mão direita, embora seja canhoto. Então, nos
serões em que Emily pintava, Mr. Mouse instalava-se no cadeirão para ler.
Acreditava que podia embarcar em romances apaixonados, com histórias
palpitantes, aventuras, livros para nos atemorizarmos no meio de ondas de dez
metros a saborear no canto da lareira.
Mas não há nada a fazer. Mr. Mouse está demasiado velho, sem dúvida, ou então
acreditou demasiado nessas histórias quando era ratito – já não tem jeito para
viajar assim, desde então.
Durante algum tempo, Mr. Mouse sentiu-se infeliz com esta enfermidade, e
arranjava consolo como podia: fingia seguir o caminho das linhas, mas apenas
mergulhava no quase silêncio do terreiro, no arruivado da cerveja e na
claridade das chamas. E depois, como que por magia, outros livros chegaram-lhe
ás patas. Livros diferentes, livros deliciosos que não falam de grande coisa,
mas que se comem e se bebem com o olhar. O primeiro começava assim:
“Eu e a minha lareira, cabeças brancas e velhos fumadores, moramos no
campo. Atrevo-me a dizer que nos estamos aqui a transformar em autênticos
autóctones : e particularmente a minha lareira porque ali se afunda um pouco mais cada dia.”
Eu e a minha lareira : Herman
Melville. Havia alguém que escrevia assim! Foi uma grande felicidade para Mr.
Mouse. A capa do livro puxava para o colorido, com uma fotografia de casa
debaixo de neve. Podia-se saborear o texto muito lentamente. Era melhor, mais
espumante que a melhor cerveja de Mrs. Hamper.
Mais tarde, Mr. Mouse descobriu outros tesouros com alguns autores de
além-Mancha. Um deles, Mr. J.M.G. Le Clézio, tinha escrito um livro muito
estranho e muito belo, que não levava a parte nenhuma e conduzia a todo o lado:
presente, passado, futuro, espaço. O
desconhecido sobre a terra. Aí também, a primeira frase era tão particular:
“ Eu queria falar-vos longe, longamente, com palavras que não fossem
somente palavras, mas que conduzissem até ao céu, até ao espaço, até ao mar.”
Mas o mais espantoso, é que Mr. Mouse se tornou no amigo epistolar dum
terceiro autor, também ele francês: Mr. Alain Gerboise. Mr. Gerboise é
nomeadamente o autor de dois romances
deliciosos dedicados ao queijo, o primeiro de atmosfera holandesa, o segundo
com um clima de Auvergnat: A Cor laranja e Uma espécie de Azul.
Entusiasmado pela leitura destas duas obras-primas, Jeremy Mouse dirigiu uma
carta ao editor de Mr. Gerboise, em Paris. Que surpresa e que felicidade ao receber uma carta de França, menos de um
mês depois! Mr. Crabtree, o carteiro, ficou duravelmente impressionado, e desde então
fala a Mr. Mouse com um toque de respeito. A carta, das mais amigáveis, era do
próprio Mr. Gerboise. Aconselhava Mr. Mouse a pegar na pena , na altura, para
conhecer as alegrias da escrita.
Petrificado de agradecimento, Mr. Mouse levou algum tempo a assumir o
encorajamento. Para se elevar ao nível desta benevolência, achou então por bem entregar-se a algumas reflexões
filosóficas sobre a vida dos terreiros, sobre a organização social dos ratos
ingleses. Passou para um caderno quadriculado os seus rascunhos infames de
canhoto contrariado , e dirigiu-os ao seu longínquo amigo. A reacção de Mr.
Gerboise foi apenas cortês. Mortificado, Jeremy Mouse lançou-se de forma
incontida num romance histórico de paixões desenfreadas. Parecia-lhe que estas
rebentações tinham algum porte, mas Alain Gerboise não ficou nada entusiasmado.
Desesperado, Mr. Mouse disse adeus à literatura. No máximo, continuou
por delicadeza a dar notícias suas daqui e dali
ao escritor francês. Pondo de parte qualquer pretensão formal,
contou-lhe dos serões, do vinho de amoras, do guisado de carne de vaca com
castanhas e nabo do Lancashire, dos
caminhos cheios de neve, das reflexões de Mortimer e de Jennifer, da cor dos
seus dias. Sem se esforçar, apanhou o
gosto de se instalar ao serão perto de Emily, espelhando a sua vida para aquele
amigo longínquo. Um dia, recebeu de Paris
uma carta surpreendente. Alain Gerboise escrevia-lhe a dizer que nunca
tinha lido nada de tão verdadeiro, nem
de tão bonito! Jeremy Mouse começou por se perguntar se não estariam a troçar
dele. Mas não. Gerboise insistia, até falava numa eventual edição.
Mr. Mouse não acredita muito nisso, mas desde então escreve todos os
dias. Escreve pequenino: os dias, os céus, as coisas, os cheiros, e a confusão
na qual despontam os seus dias . Faz rolar as palavras sob os dedos, as suas
páginas parecem-se com ele, e isto é felicidade.
Quanto á edição, tem tempo: um livro
assim nunca está completamente acabado.
Philippe Delerm, Mister Mouse ou a Metafísica do Terreiro, Trad.
Clotilde Simões, Livrododia Editores, 2007