|Alexandra Malheiro
Os dias vão correndo estranhos também no meu café. A chuva
miúda teima em pegar-se aos vidros e, com ela, se esvai a nitidez para lá da montra.
A mim mói-me por dentro este chuviscar constante.
Leio uma coisa aqui e outra ali, avulsas, sem conseguir
traçar entre elas uma credível teia que possa alinhavar-se em crónica, uma que possa
partilhar convosco. O Carnaval é um penumbroso tempo de chuva, esquecido de um
feriado que nunca o foi bem, os foliões recalcitrantes guardam as fantasias nos
guarda-fatos derivado ao mau tempo, enquanto palhaços bem vestidos continuam a
perorar no horário nobre da televisão. O Papa renuncia ao seu pontificado
enquanto no mesmo dia um fotógrafo capta um raio a atingir a Basílica de São
Pedro. Na rua onde o meu café está instalado há vários indigentes mendigando
uns trocados, a miséria é a de sempre.
Enquanto o cimbalino me aquece leio o VI diário dos dias comuns do enormíssimo José Gomes Ferreira – “ Memória Possível” é o subtítulo do
volume agora dado à estampa pela D. Quixote. Não façamos confusão, por favor,
falo do autor de “Poeta Militante” e não de qualquer palrador de economês
politiquense. E, se dúvidas eu tivesse em relação à extraordinária
clarividência daquele homem e sua capacidade até de antever futuros, tê-las-ia
desfeito neste pedaço de prosa qua a páginas tantas surge, a propósito da sua
descoberta de um jogador de futebol que levava o seu nome, “Gomes Ferreira” e,
levando em conta a existência de pelo menos dois professores com esse nome, um mau
desenhador e um locutor, todos portadores desse nome, o Zé Gomes acabava
concluindo à laia de auto-consolo: “Ao
menos assim, na lista telefónica perco-me numa multidão, sempre escondido atrás
de mim mesmo. Anónimo e livre. Com um perfil que, afinal, só eu conheço. Ou
desconheço.”
Ler José Gomes Ferreira é um vício que adquiri há muito,
tudo se aprende nesta escrita diarística que vai descrevendo desde as suas
coisas mais pequenas e afectivas à forma como constrói e desconstrói poemas.
São também, estes diários, compêndios de história próxima. Ainda nem cheguei a
meio e já nos reconheço tão profundamente, a nós, portuguesinhos apertados pela
mesquinhez salazarenta, 48 anos de miséria inculta e deseducativa da qual nunca
nos recompusemos verdadeiramente. Se hoje estivesse connosco, a viver os tempos
troikianos, o Zé Gomes escreveria ainda sobre o mesmo miserando portuguesismo
despolitizado e imbecil, fruto de uma educação que anos e anos de Salazarice
nos legou. Dizia ele sobre o ditador “Quanto
ao povo queria-o como quando o conheceu em criança, nas Beiras: humilde, curvo,
chapéu na mão, cabeça baixa, pontapés no rabo… Hospitais? Maternidades? Para
quê? Para aliviar os familiares do sofrimento? – acusava ele numa entrevista
parola”. E eu a remoer um amargor de alguma coisa que me lembra o presente.
De tudo o que já li neste diário, o corolário vitorioso,
porém, é este com que fecho a crónica. Atentai, pois:
“Agora
mesmo, sintonizei por acaso a estação clandestina “Portugal Livre” (oriunda de
Praga, suponho), onde uma rapariga com voz de exaltação quase histérica
incitava aos gritos os portugueses a virem para a rua combater, lutar, morrer,
construir barricadas…
Mas isto é connosco? – perguntei a mim mesmo, pasmado com estes heróicos revolucionários emigrados que ignoram o facto comezinho da despolitização geral do nosso povo, que não se quer bater por coisa nenhuma.
Liberdade, sim – mas oferecida numa bandeja. E mesmo assim com a condição de saber a tirania disfarçada!”
Mas isto é connosco? – perguntei a mim mesmo, pasmado com estes heróicos revolucionários emigrados que ignoram o facto comezinho da despolitização geral do nosso povo, que não se quer bater por coisa nenhuma.
Liberdade, sim – mas oferecida numa bandeja. E mesmo assim com a condição de saber a tirania disfarçada!”