Não
há nada a fazer. A dor é a dor e com músculos rasgados não se brinca.
Trabalha-se. Não sei quem foi Gustave Caillebotte. Nunca me preocupei em
aprofundar as suas dores. Não trabalho a arte como quem afaga o chão, sou de
distracções brutas no que toca a pormenores e acabamentos. Pior que isso, sou
da preguiça. Sou do não querer saber mais, do ficar a olhar e sentir, vindos não
sei de onde, uma série de comichões internas que, por vezes, se tornam tão
insuportáveis como uma distensão muscular. Os meus amigos ladrilhadores não
conhecem o quadro. Já lhes tenho dito: em 1998, quando estive no Museu d’Orsay,
vi-vos por lá. Eles não acreditam. Como lhes digo estas coisas em momentos de
bebedeira, pensam que estou a alucinar, que é mentira, que é mais um dos meus
delírios pseudopoéticos. Mas eu não
deliro com quadros de Caillebote. Eu deliro com corpos femininos e citações de
Nietzsche: «a arte não é apenas imitação da realidade da natureza mas
precisamente um suplemento metafísico da realidade da natureza, e a ela
adicionado com o fim de superá-la» (O
Nascimento da Tragédia, trad. Teresa R. Cadete). Trata-se, é certo, de uma
citação inicial, mas tão luminosa quanto
Os Afagadores de Soalho, de Gustave Caillebotte.
Falemos, então, de citações. As primeiras
epígrafes do livro inicial de Fernando Guerreiro são de Hermann Melville,
Joseph Conrad, Charles Baudelaire. Os albatrozes tinham ficado para trás, assim
como «o grosso pelicano dos mitos». «A metáfora chega onde sangra o real». «Há
que economizar calorias, alegrias, em estação de escassez» (Livros Iº e IIº, 1977). São poemas atravessados
por marés, estações, povoados de aves em pleno voo. Um pelicano junta-se às
gaivotas e aos albatrozes numa ilha onde os veleiros ainda vão naufragar.
Ninguém sabe destas ilhas nem de seus faróis ilusórios. O leitor pressente uma
tempestade, a chuva intensa disparada contra os vidros, pressente a trovoada,
caem mísseis no vazio, rebentam sons, não abrem fendas. Rilke é arrastado pela
ventania como se de uma folha em queda se tratasse. Eis que parte do ofício se
explica: escrever é inventar a realidade, levar o relâmpago aos olhos do leitor,
mostrar-lhe «pequenos quadros / velhos, guaches pendurados nas paredes, que um
pintor, afogado / nos seus símbolos, metonimicamente transfere, inverte e
corrige». As possibilidades de sentido serão tantas quantos os sujeitos
posicionados perante o objecto. Não se trata tanto de relativizar a relação
sujeito-objecto, como de promover no acto de observar uma dimensão de
(re)criar, ou seja, de atribuir significado a. O sentido e o significado,
enquanto enigma em processo de continuada (re)construção é o que está em causa
nesta teoria da literatura.
Afagadores
de Soalho foi a imagem que Fernando Guerreiro escolheu para a capa dos Poemas Interiores (1980). Regresso ao
quadro de Caillebotte e não consigo abstrair-me daquela garrafa e daquele copo,
dos instrumentos de trabalho espalhados pelo chão, dos corpos, sinto o cheiro
dos corpos, o suor do trabalho, sinto a metafísica de um corpo que trabalha. Aquela
garrafa é a metafísica do quadro, toda a metafísica do quadro está naquela
garrafa periférica. Sobretudo se pensarmos o objecto como corpo que simula e
representa um outro corpo (ausente-presente na forma de fantasma). É uma
impressionante garrafa fantasmagórica. E o impressionismo é um conceito que
jamais me dirá tanto quanto me dizem as lascas do soalho de Caillebotte, pois
«textos, obras, poemas, etc., são preciosos Faróis ─ sinais de iminente
perigo interior ─ que ladeiam os caminhos tortuosos da História e defendem os
homens dos malefícios da Noite e das Trevas…» A questão é: como podem as
palavras reproduzir um objecto? Será possível justificar o corpo da literatura?
O que perpassa nos ensaios de Fernando Guerreiro é uma Teoria do Fantasma: «A
Literatura apresenta-se assim como uma máquina de produzir fantasmas» (Italian Shoes, 2005). Esses fantasmas
são simulacros de uma dupla realidade: corpos que expandem o corpo que o gera.
A literatura é, neste sentido, «disseminação do real», produção de novas
realidades que refazem permanentemente o mundo.
As «dúvidas quanto à literatura» acabam a
postular a Voz enquanto indiciadora, mais que “significadora”, de um Sujeito que
emite um discurso. Quem estiver familiarizado com a poesia de Fernando
Guerreiro, facilmente entenderá esta noção de literatura que coloca tudo no seu
devido lugar: «a poesia, enquanto estado vibratório do real e da linguagem,
pode ser entendida como música (i.e. ritmo): simultaneamente disseminação do
real e produção de simulacros». Recordemos o ciclo iniciado com Teoria da literatura (1997) e continuado
com os livros Outono (1998), Gótico (1999), Grotesco (2000) e Caminhos de
Guia (2002). O que nestes livros adquire um corpo singular já vem duma
metamorfose antiga que se iniciou com Livros
I.º e II.º (1977). Na sua relação com o real, a Literatura/Poesia é o corpo
que dá realidade ao real, que o nomeia. Mais do que reproduzir o real, a
Literatura/Poesia produz real. Projecto: «Uma literatura de imagens que faça
vacilar a imagem de literatura».
Todos os volumes que integram esta série
vieram a lume na Black Sun Editores, projecto editorial dirigido pelo próprio
autor. Gótico valeu-lhe a atribuição
do Prémio P.E.N. Clube Português de Poesia em 1998, o qual foi prontamente
rejeitado. A discrição de Fernando Guerreiro é por demais conhecida,
manifestando-se, desde logo, no facto do seu nome não aparecer, por exemplo, na
capa dos livros que compõem o ciclo aqui evocado. Esta discrição, que não deve
ser confundida com arrogância, nem pode, neste caso, explicar-se por um
qualquer tipo de marginalidade voluntarista, é uma característica dos autores
que vivem a poesia para lá das recepções, dos encómios, da visibilidade
mediática – sempre tão discutível num país de 10 milhões de habitantes e 300
leitores de poemas. Ela foi-se tornando evidente desde a primeira obra do
autor, profusamente rasurada e anotada à mão, numa singela impressão, em off-set, da qual foram feitos apenas 250
exemplares (distribuídos pelos amigos ou vendidos ao preço unitário de 100
escudos, segundo consta no cólofon).
Mas a discrição não impediu o crescimento da
obra de Fernando Guerreio, quer da obra poética, quer da obra ensaística, nem
conteve o seu reconhecimento pelos aficionados da poesia e por alguns
diligentes analistas do meio literário português. O ciclo de obras que agora
relembramos foi especialmente marcante no contexto dessa afirmação, mostrando
um poeta onde a cisão com o filosófico era, de algum modo, eliminada, muito à
maneira do que sucedia com os idealistas alemães. O próprio título Teoria da Literatura remete-nos para um
campo teórico há muito afastado da poesia portuguesa, um campo de interrogações
várias sobre o putativo fim da literatura e o sentido da poesia: «Para quê
escrever poesia?»; «poder-se-á considerar a Filosofia um efeito / da
Literatura?»; «De que catástrofe, na sua memória, / emerge ainda a poesia?»; «O
que se pode exigir da poesia?»; «Qual o valor real dos símbolos?»; «O que se
pede da poesia?» Todas estas interrogações foram sendo desenvolvidas nos
volumes subsequentes, em poemas onde impera um discurso narrativo, formalmente
desinteressado, justaposto a um esforço filosófico sem limitações estilísticas
a circunscreverem-lhe a acção.
Os poemas de Outono inserem-nos numa fase crepuscular, repleta de enigmas,
incertezas, paradoxos, lançam-nos no território resvaladiço da poesia, pelo
menos quando ela transcende a barreira que separa o pensamento dos sentimentos,
desafiam-nos os preconceitos ao mesmo tempo que nos introduzem no lugar daquele
que escreve: «Quem / escreve lembra-se apenas de um Outono ─ / cujas folhas,
por entre as palavras, / não nos deixavam sequer aperceber / as cores tintas do
crepúsculo». O Outono é a estação mais propícia à literatura, é a estação da
queda, o nascimento, por assim dizer, da morte, é uma estação transitória, tal
como outra coisa não pode ser a literatura. Ao interrogar-se sobre o sentido da
literatura, Fernando Guerreiro interroga-se igualmente sobre o sentido do Ser.
A história deu-nos a provar o sabor do caos, descerrou o corpo da ruína. Já não
olhamos para o passado com nostalgia, olhamo-lo como quem vê a morte anunciada,
a prova irrefutável de que caminhamos para o abismo. Que sentido, então, para a
literatura? O sacrifício do belo, uma dança de fantasmas, a ruptura dos
consensos: «um passeio distraído entre o destino e a mágoa em que / só os mais
simples, para dele nunca mais regressarem, / sem reservas mergulham» (Gótico, p.54).
Vem do primeiro livro a ideia do farol,
metáfora pedida de empréstimo a Baudelaire. Mas as epígrafes que há pouco
referi têm subjacente um outro problema: «o Ser coincide com a sua imagem
(fim), que o estrutura? Ou com a sua falácia?» (Negativos, 1988) Segundo Guerreiro, estas são questões já presentes
em Lord Jim, de Conrad, ou em Moby Dick, de Melville. O sentido da
literatura é a experiência do terror que aquele que escreve sente ao passear
dentro de si, perdendo-se entre os escombros de uma cidade bombardeada, na
vegetação de uma floresta obscura, por entre os vales fundos de uma montanha
que importa escalar, para depois se desencontrar com o monstro reflectido no
espelho. A imagem de si não coincide já com o Ser, o que a página mostra simula
apenas um corpo impenetrável. O princípio da poesia é, pois, arrancar uma
palavra à morte, permitir que do terror em que mergulha aquele que escreve
possa vir à superfície uma palavra que algo mais acrescente ao mundo. Mas será
isto possível?
Não se trata já de tratar a poesia como um
elemento decorativo da literatura, trata-se de assumi-la como uma espécie de
renovação grotesca da palavra. É o uso simétrico das palavras que a poesia
revoga, dando-lhes novos sentidos, novas aplicações, rasgando-as, não as
destruindo, arrancando-lhes das vísceras significados ocultos. Daí que a
experiência poética seja monstruosa, na medida em que se torna «o lugar onde a
linguagem opera o seu extermínio» (Grotesco).
«No entanto, que tipo de escrita / é ainda possível quando da vida qualquer
experiência se revela / infrutífera?» (Grotesco) Talvez não exista resposta
para esta questão, talvez a própria questão se responda ao afirmar,
implicitamente, o carácter infrutífero de qualquer experiência. É nesta
paisagem desoladora que a poesia cresce. À Teoria
do Fantasma corresponde uma Teoria da
Monstruosidade. O problema: ser do conhecimento daquele que escreve a
impossibilidade de escapar à experiência da escrita, a esse terror, como quem
escala uma montanha para, no cume, registar uma paisagem que por lá deixa
quando regressa à base. A catástrofe compõe o cenário onde o monstro, aquele
que escreve, exerce a sua metamorfose: real-palavra.
Escrever não é buscar anestesiantes para a
dor, não é «a procura de saídas / para o abismo», é antes um suicídio lento, é
a transmutação de um corpo num novo corpo, a palavra, é um apelo para a queda.
Desmistifica-se, deste modo, a ideia da experiência poética como uma
experiência sublime, uma experiência de revelação e de encontro com uma luz
que, chegados ao cume da montanha, está sempre para lá do mais alto dos
lugares. Chegar a esse lugar é ter a perspectiva do precipício, é sentir a
vertigem da queda. Com ironia: «Eis resolvido / o enigma da poesia: para / quem
lê, uma cropofagia / das alturas» (Caminhos
de Guia). Questionar a poesia através da prática do poema é recorrente.
Ninguém o fez tão bem como Fernando Guerreiro, cujos poemas são o osso da
literatura a mostrar-se através da carne rasgada da palavra poética. Pena que
nos pareça tão parcamente lido por quem mais o deveria ler, os monstros, as
estranhas, híbridas e andróginas criaturas da escrita.
*Este texto foi publicado na Sítio 6*
Henrique
Manuel Bento Fialho nasceu em 1974 e é autor dos livros Neoménia seguido de Outros Exorcismos (1997), Entre o dia e a noite há sempre um sol que se põe (2000), Antologia do Esquecimento (2003), Estórias Domésticas & Outros Problemas
(2006), O Meu Cinzeiro Azul (2007), Estranhas Criaturas (2010), A Dança das Feridas (2011) e Rogil (2012). Tem publicação dispersa
por numerosas revistas e mantém o weblog Antologia do Esquecimento.