|Miguel Godinho
Melhor que ninguém, os poetas
bélicos sempre souberam munir-se das palavras certas para combater a nossa constante
sujeição à vidinha de todos os dias. E porque a poesia é arma da verdade e a
verdade é arma da poesia, eis que João Bentes – poeta bélico por natureza – finalmente
decide avançar para a publicação de «Odes», o seu primeiro livro de poesia (pese
embora a grande maioria dos textos que o compõem tenham sido escritos entre
2008 e 2011), tentando assim marcar a sua posição, dizendo que ele próprio está,
antes de mais, descontente com o mundo e, por isso mesmo, sempre esteve e
sempre estará na frente de batalha, na vanguarda da insubmissão. E cuidado porque
a sua poesia vem equipada de um rigor, de uma sinceridade que nos toma de
assalto; uma autenticidade que nos atinge de tão pura, revelada brutalmente da
primeira à última palavra do livro, como se ali não se assistisse a outra coisa
que não a uma investida musculada contra a pornografia do sistema vigorante,
contra o comodismo de toda a gente, contra a hipocrisia do mundo.
Uma poesia dura – não poderia ser
de outra forma – despida de preconceitos, crua e altamente britada, que recorre
sem pudor ao calão, ao palavrão (como
se não houvesse outra forma de dizer aquilo que é a verdade mais sentida), mas,
ao mesmo tempo, extremamente íntima, carregada (como uma arma) de sinceridade e
lucidez; uma poesia local, filha da terra em que é produzida – as areias da
praia de Faro, um sítio muito distante – apartado – do mundo das «pessoas brancas» que definham diariamente
sem sequer se aperceberem porquê; mas simultaneamente uma poesia universal, porque
já todos nós nos revimos, em algum momento da vida, nessa revolta.
Nas Odes de João Bentes é fácil
descobrir todo um vocabulário de metáforas ligadas ao mar e à vida marítima – o
meio em que o poeta nasceu, cresceu e ainda vive, e que explicitamente serve de
antítese à vida urbana onde as pessoas, a todo o instante, aguardam o grande
«curto-circuito» decorrente da sucessão dos dias, e tantas vezes assentam a
alegria daquele «viver óptimo (…) no delírio
colectivo dos grandes centros comerciais», no televisor que dita a toda
a hora o último impulso consumista, na artificialidade da vida quotidiana
suportada pelo desejo de subir na «carreirazinha» laboral; o mundo em que as
pessoas vivem (tantas vezes sobrevivem, emocionalmente) sem, no mínimo, se questionarem
a si próprios.
Todos estes temas aqui tratados parecem
surgir com um desígnio claro: «para que o vazio nunca mais seja vazio»; para
«acabar com toda a mentira envolvida nas políticas de crescimento»; recorrendo
para isso (às vezes parece que imaginamos os textos a serem ditos em jeito de spoken-word), num dos casos, a uma belíssima deformação de um poema do poeta
algarvio João Lúcio, conseguindo também assim expor de uma forma extremamente interessante
aquilo que é actualmente o Algarve, aqui também ele personagem principal, como
que metáfora do nosso ser: uma região que se deixou adulterar por querer
construir uma verdade ilusória, vendida num embrulho bem moderno e bonitinho; que
assentou os seus pilares numa realidade falaciosa de progresso e que, por isso
mesmo, se desvirtuou completamente na sua essência.
Estarei certamente contaminado
pelo facto do poeta ser um amigo de longa data mas não hesito um segundo quando
afirmo que este é, sem dúvida, um dos livros mais lúcidos e flamejantes que li
nos últimos tempos, uma poesia do Algarve para o mundo, publicada numa editora
(4águas) que representa uma geração de poetas do sul que, quase a uma só voz e associados
a um movimento dotado de uma unidade como não se via há muito tempo, fazem
questão de afirmar que, por aqui, ninguém vai em cantigas.